Hoje de manhã, entre tantas notificações que chegam ao celular e rapidamente se diluem no esquecimento, uma mensagem do amigo Luiz Blanc me fez refletir. Era um texto sobre a LEGO — sim, aqueles tijolinhos coloridos que construíram nossa infância — e nele estava escondida uma verdade que o mercado teima em esquecer: empreender é, antes de tudo, um ato de fé no invisível.
Peço licença para te conduzir por essa história que me tomou o pensamento, porque precisamos falar sobre algo que raramente aparece nas planilhas de gestão.
Ole Kirk Christiansen era carpinteiro em Billund, uma cidadezinha dinamarquesa onde o vento frio sopra forte e as pessoas medem três vezes antes de cortar a madeira. Em 1924, seu filho causou um incêndio acidental. A oficina virou cinzas. A casa da família também. Tudo que havia construído com as próprias mãos desapareceu numa única noite.
Ole recomeçou. Reconstruiu a carpintaria, voltou a fazer móveis, até que 1929 chegou como tsunami silencioso: a Grande Depressão. Ninguém comprava nada além do estritamente necessário para sobreviver ao dia seguinte. Foi quando ele olhou para os restos de madeira empilhados no canto da oficina e pensou: “Vou fazer brinquedos.”
Leg Godt — brincar bem, em dinamarquês. Dessa junção nasceu a LEGO, em 1932, em plena crise mundial, pelas mãos de um viúvo com quatro filhos e uma carpintaria esvaziada de clientes.
Mas a lição que me atravessou não está apenas no recomeço heroico, está num detalhe aparentemente insignificante: quando um dos filhos de Ole começou a trabalhar ao seu lado, decidiu economizar tempo passando apenas duas demãos de verniz nos brinquedos, em vez das três que o pai exigia. Ole descobriu e ficou furioso. Obrigou o filho a refazer todo o trabalho — mesmo que isso significasse atrasar entregas, mesmo que custasse mais caro, mesmo em meio à maior crise econômica da história.
“Det bedste er ikke for godt”, em tradução livre: “Somente o melhor é bom o bastante.”
Ole Kirk Christiansen
Pense comigo: estamos em 1932, o mundo desabando economicamente, um viúvo com quatro bocas para alimentar, e ele escolhe a qualidade acima da sobrevivência imediata. Não por ingenuidade, mas porque compreendeu algo que transcende épocas: a única moeda que realmente importa no longo prazo é a confiança. E confiança se constrói naquilo que ninguém vê — na terceira demão de verniz, no detalhe que só você conhece, no compromisso silencioso com a excelência.
Isso me lembra algo que aprendi nos meus 32 anos de atuação profissional: o cliente pode esquecer o que você disse, pode até esquecer o que você fez, mas jamais esquecerá como você o fez sentir. E esse “como” mora justamente nas camadas invisíveis, naquilo que não aparece na conta, não constam no autos, não está escrito em lugar nenhum — mas que todos, absolutamente todos, conseguem sentir.
A história de Ole continua com um twist digno de cinema: ele finalmente consegue um grande pedido de um atacadista para o Natal. Pai e filho trabalham noite e dia, cada brinquedo recebendo aquelas três demãos de verniz, cada peça tratada como se fosse presente para filho de Rei. Faltando dias para a entrega, chega uma carta: o atacadista faliu.
Todo aquele estoque, aquelas horas de trabalho, aquela esperança transformada em madeira polida… e ninguém para comprar.
Ole e o filho pegaram os brinquedos e saíram vendendo de casa em casa, trocando por comida quando o dinheiro não aparecia. E foi nessa jornada desesperada pelas estradas geladas da Dinamarca que descobriram algo fundamental: as pessoas amavam aqueles brinquedos. As crianças brincavam, os pais sorriam. Havia ali mais que madeira e verniz. Havia conexão. Havia alegria. Havia propósito.
Em 1942, um segundo incêndio destruiu completamente a fábrica. Tudo virou cinzas novamente. E Ole reconstruiu. De novo. Não por teimosia ou falta de opção, mas porque havia descoberto que fazer brinquedos era sua forma de semear alegria num mundo destroçado pela Segunda Guerra Mundial. Foi depois desse incêndio que comprou a primeira máquina de plástico. Em 1949 nascem os primeiros blocos que se encaixavam — ainda imperfeitos, mas a semente estava plantada.
Foram necessários 17 anos entre a fundação e os primeiros blocos de plástico. O sistema de encaixe perfeito só veio 26 anos depois. Até na organizada Dinamarca, num país teoricamente mais estruturado que o Brasil, levou décadas para a LEGO se tornar o que conhecemos hoje.
Quando o amigo Luiz Blanc, carinhosamente nos chamamos de “Xará”, enviou o texto esta manhã, ele me convidava, sem saber, a olhar para toda a jornada que construí nesses 32 anos no setor de alimentação fora do lar — com olhos renovados. Porque assim como Ole descobriu que brinquedo não era sobre madeira ou plástico, mas sobre alegria e desenvolvimento infantil, descobri que assessoria jurídica no food service não é sobre petições e pareceres, mas sobre dar tranquilidade para que o empresário durma à noite. Que gestão não é sobre planilhas, mas sobre pessoas. Que tecnologia não é sobre sistemas, mas sobre simplicidade.
É sobre gente cuidando de gente — num mundo que insiste em automatizar até os afetos.
Ole Kirk Christiansen morreu em 1958 sem imaginar que em 2015 a LEGO seria eleita a marca mais forte do mundo. Sem saber que crianças de 2025 ainda brincariam com os blocos que ele começou a fazer nas cinzas de 1932. Ele simplesmente fez o melhor que podia, com o que tinha, onde estava.
E mudou o mundo passando três demãos de verniz quando ninguém estava olhando.
Essa é a única revolução possível: fazer extraordinariamente bem o ordinário de cada dia, cuidar daquilo que ninguém vê mas todos sentem, construir tijolinho por tijolinho algo maior que nós mesmos. Porque no final, o que distingue o trabalho honesto da pressa mercenária não está no que se mostra — está no que se esconde sob a superfície polida, naquela terceira camada de verniz que só você e o tempo conhecem.
Luiz Henrique do Amaral
Advogado
CEO LHA Advocacia Estratégica
Cofundador Food Hub Solutions

